Carlos Martins.


Suspeito que se uma equipa de neurocirurgiões analisasse ao pormenor o cérebro do Carlos Martins não encontraria nada de especial. Se os lóbulos do bolbo raquidiano são a zona do cérebro especializada em gerir as emoções e a agressividade, os do Carlos terão quatro ou cinco vezes o tamanho normal e, provavelmente, o bolbo já cortou relações com o raquidiano há alguns anos. Tirando isso, porém, a explicação para o desequilíbrio do artista não é morfológica. É ambiental.

O Carlos chegou ao Sporting com o rótulo de craque. À partida, isso não o distinguiria dos vinte ou trinta miúdos que ali chegaram nas mesmas condições durante a década de 1990. Simplesmente, o Carlos foi dado como craque aos 11 anos. Para uns, isso seria um fardo suportável. Para o Carlos, essa responsabilidade tornou-o naquilo que os especialistas chamam um maluquinho irrecuperável.

Talvez se recordem que, pela transferência do Oliveira do Hospital para Alvalade, o Sporting teve de compensar o clube do distrito de Coimbra com um jogo particular realizado pelos seniores de então. Nessa tarde memorável, aquele dez réis de gente deu o pontapé de saída perante a euforia das bancadas, que vitoriaram loucamente o futuro craque da terra.

Ao longo do seu percurso de formação, estimulado pelos contínuos elogios à sua (reconheçamos) ímpar capacidade técnica, o Carlos desenvolveu um forte sentido daquilo a que ele próprio designa por carisma e a que o resto do mundo chama esquizofrenia aguda. Em função disso, não concebe uma decisão técnica que lhe seja desfavorável. Mastiga demoradamente cada desilusão como se ela escondesse uma marosca inconfessável para o tramar. Interioriza, sem processar, essa frustração e, quando entra em campo, fá-lo com a avidez dos cavalos de corrida, pronto a resolver um jogo nos primeiros três minutos. Aos quinze, está invariavelmente de língua de fora; aos trinta, está esbaforido e de olhos esbugalhados; aos cinquenta, costuma ser expulso por agressão bárbara.

No fundo, necessita de provar à bancada, em cada lance, que merece estar ali e que aquele é o seu lugar. Mesmo que isso implique lançar-se num carrinho louco, a caminho da linha de fundo [vide Sporting-Moreirense], para tentar centrar uma bola impossível e terminar o lance com o ombro deslocado.

Dir-me-ão os senhores que está ali um craque em potência. É o problema da polissemia na língua portuguesa: para o Benfica, o Carlos tanto pode de facto vir a ser um craque (jogador de excepção) como um craque (queda abrupta de cotação). Eu aposto na segunda.
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