Muro de Berlim.


Dia 9 (segunda-feira), o mundo celebrou a queda do Muro de Berlim, o símbolo mais inequívoco de um universo opressivo, nascido do equilíbrio do terror nuclear entre as duas superpotências que dominaram a geopolítica do pós-guerra. O mundo inteiro? Não. Numa 'aldeia' de irredutíveis comunistas há quem prefira celebrar não o muro caído mas o muro ainda erguido, entre 1961 e 1989, cortando ao meio um país, cortando ao meio uma cidade de onde os próprios habitantes não podiam sair por imposição de uma potência estrangeira - a URSS - que a ocupava militarmente. Este Astérix de sinal contrário, adepto das legiões romanas com sotaque russo, é o Avante! , órgão central do Partido Comunista Português, que em editorial derrama lágrimas pela queda do império soviético, suspirando de nostalgia pela Revolução de Outubro.

"A constituição do primeiro Estado operário; as conquistas civilizacionais – políticas, sociais, económicas e culturais - alcançadas na União Soviética nascida da Revolução de Outubro; o processo de construção do socialismo então iniciado e os seus êxitos; as múltiplas repercussões no mundo de todo esse exaltante processo, dando nova dimensão à luta de libertação nacional dos trabalhadores e dos povos e à luta pela paz – e, com tudo isso e por tudo isso, o papel que a URSS passou a desempenhar à escala planetária, criaram novas e promissoras perspectivas num mundo até então submetido ao domínio absoluto do sistema capitalista, apresentado como uma «inevitabilidade» decorrente de uma «ordem natural das coisas» fabricada pela ideologia dominante à medida dos interesses do grande capital internacional", escreve o Avante!. Como se vivêssemos no mundo pré-1989, antes da queda do comunismo nas capitais do Leste. Como se vivêssemos no mundo pré-1973, antes de Soljenitsine ter feito a minuciosa descrição do universo concentracionário dos gulags na mais emblemática das suas obras. Como se vivêssemos no mundo pré-1956, antes da revelação - pelo próprio secretário-geral do Partido Comunista soviético, Nikita Khrutchov - dos crimes cometidos por Estaline, o czar vermelho desse falso "primeiro Estado operário" que os comunistas ortodoxos portugueses, possuídos de um saudosismo serôdio, agora glorificam.

"A derrota do socialismo, com o desaparecimento da União Soviética e da comunidade socialista do Leste da Europa, constituiu uma tragédia, não apenas para os povos desses países mas para toda a humanidade: com o capitalismo dominante, o mundo é, hoje, menos democrático, menos livre, menos justo, menos fraterno, menos solidário, menos pacífico", refere ainda o editorial do órgão oficial do PCP.

Nem por um momento ocorre ao Avante! reflectir sobre o que levou essas sociedades tão progressistas a implodir estrondosamente e os trabalhadores 'libertados' de Leste a correr rumo à 'opressão' do Ocidente. É que essas sociedades se fundavam numa mentira que o PCP gosta de repetir ainda hoje: não havia Estados-operários mas ditaduras burocráticas, assentes num capitalismo de Estado para o qual cada cidadão era um sujeito destituído de direitos - começando pelos direitos laborais. O próprio direito à greve era severamente reprimido, como experimentaram na pele os operários que se rebelaram em Berlim-Leste (1953) ou na Polónia (1956, 1970, 1981), já para não mencionar a Roménia do camarada Ceaucescu, que mandava construir os seus faustosos palácios com mão-de-obra escrava.

Este era o falso ''paraíso socialista' que terminou em 1989. O mundo ficou mais livre depois da queda do Muro - depois da queda de todos os muros do Báltico ao Adriático. E ficou também mais igualitário e justo. Porque nenhuma liberdade era realmente digna desse nome na Europa quando permitíamos, por acção ou omissão, que metade do continente ainda não tivesse perdido as grilhetas, para usar uma expressão marxista que o Avante! só emprega quando lhe convém. Como se houvesse alguma superioridade moral nas grilhetas comunistas.
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