Desde sempre, os regimes políticos tiveram como premente necessidade de afirmação o apresentar de uma data que marcasse um evento primordial na escalada para um poder que, a determinado momento, se consagraria na conformação de uma outra organização institucional.
Se em França a chamada Tomada da Bastilha foi heroicizada a uma dimensão que pouco corresponde à realidade daquele dia 14 de Julho de 1789, tal acontecimento consistiu, contudo, no marco iniciador de um outro capítulo na relação de forças que alterariam para sempre o aspecto social e político do país. Uma mal-sucedida tentativa de contemporização por parte do governador da fortaleza, que já era apenas um pálido símbolo de outros dias em que teve outro peso, levou ao conhecido desfecho. Em nota de curiosidade, saliente-se que o aproveitamento do mito levava a que mais de sete décadas decorridas ainda fossem atribuídas avultadas somas para pouco prováveis, mas autoproclamados, heróis da Bastilha. O mesmo sucederia pouco mais de um século depois, quando a profusão de “heróis da Rotunda” ameaçou esmagar o novel regime com oportunos pedidos de reconhecimento.
Um famoso filme de Eisenstein mostra-nos uma outra versão de encenada correria que, na realidade, pouca verosimilhança teve com os acontecimentos. O assalto ao Palácio de Inverno de S. Petersburgo foi para o regime bolchevista um pretexto precioso – propiciado pela recém-nascida tecnologia cinematográfica – para a necessária propaganda mobilizadora de uma volúvel “consciência de massas”. Os factos reais foram bem diferentes e o tiroteio existiu, mas sem qualquer dimensão aproximada àquela que o talento do realizador oficial apresentou. A obra de arte consistiu numa necessidade de afirmação, à semelhança de outra que mais tarde surgiria no alvorecer da rivalidade que oporia a URSS ao III Reich. Alexandre Nevsky é um filme com uma clara identidade política que, nas mentes russas, fez a alusão a tempos passados com uma clara correspondência à situação internacional da época.
Em Portugal, temos então o autêntico padrão basilar do 31 de Janeiro. Quando poucos anos antes, Elias Garcia, então o dirigente do PRP, propunha a pura e simples dissolução do Partido, tal se devia à completa impossibilidade da existência de uma organização que pudesse competir com os chamados partidos rotativos e constitucionais: o Regenerador e o Progressista. De facto, os republicanos consistiram, durante demasiado tempo, numa arma de arremesso à mercê de qualquer um dos principais grupos políticos contendores e a eleição de deputados em S. Bento foi sempre pautada pela negociação com o aliado do momento, ansioso por ameaçar o adversário, atacando indirectamente a figura a quem em última instância competia a atribuição da chefia do Governo: o Rei. Disso ninguém alimentava qualquer tipo de dúvida e os próprios republicanos ainda mais do que os seus imaginados adversários do campo monárquico.
A situação portuguesa em Janeiro de 1891 ainda vivia o rescaldo do Ultimatum que fizera desfazer, no invisível éter, os grandiloquentes sonhos de grandeza anexionista que as “agremiações patrióticas” de modo louco e populista alimentaram junto da incipiente e volátil opinião pública urbana. A questão colonial era, como muitas outras, uma importação da moda expansionista que grassava nas principais potências europeias. Bem conscientes de um passado de grandeza histórica, os impressionáveis portugueses do fim de Oitocentos julgavam possível igualar nos mapas as grandes manchas que iam colorindo África e simbolizavam, para todos os efeitos, o estabelecimento da Union Jack britânica e da Tricolor francesa em territórios inexplorados, mas prometedores de farta recompensa material. Tal como os espanhóis em relação aos seus, há muito esquecidos e nominais, territórios insulares do Pacífico – que mais tarde acabaram por ser vendidos à Alemanha sem que alguém se manifestasse nas ruas de Madrid e Barcelona -, os portugueses apreciavam a aparência na firmeza, desde que isso não implicasse qualquer sacrifício pessoal ou colectivo. O que significava a remissão para um distante e anónimo Estado a responsabilidade pela salvaguarda dos pergaminhos de um sempre em crescendo nacionalismo que fazia a época.
A questão do Mapa Cor-de-Rosa consistiu num venenoso amontoado de equívocos, falsas esperanças de participação no jogo das grandes potências e, sobretudo, numa inexplicável cedência ao irrealismo presente nas ruas e sempre açulado por um frenético publicismo que fazia furor nos apinhados cafés e tascas de Lisboa.
Como mais tarde (1895) o esmagador episódio de Fachoda demonstraria, nem a plena ocupação de um território – tal como previra o Congresso de Berlim - significava a automática posse de qualquer área colonial que estivesse na mira da potência dominante, a Inglaterra. A França ocupou o Vale do Nilo sudanês, ergueu a bandeira com apresentação de armas por parte da guarnição militar e anexou formalmente o território. Dias depois, umas tantas canhoneiras britânicas obrigaram à aturada ponderação parisiense e, à parte os normais bambúrrios de boulevard, o Quai d’Orsay emitiu a ordem de arriar a flâmula de Austerlitz – e de Waterloo -, evitando uma guerra de catastrófico desfecho.
Nem de jure, nem de facto, Portugal podia almejar a uma séria reivindicação de soberania sobre os territórios que preenchiam o gigantesco e quase desconhecido hiato entre a costa angolana e moçambicana. A quimera confirmar-se-ia poucos anos mais tarde, quando da imperiosa necessidade de plena ocupação do hinterland da então África Oriental Portuguesa. As campanhas de Mouzinho de Albuquerque, Caldas Xavier e outros “africanistas” enfrentaram os poderosos vátuas que, para grande surpresa na Europa, foram derrotados por uma quase temerária força expedicionária portuguesa, precisamente no momento em que a Itália era copiosamente esmagada pelos abexins, em Aduá.
O problema que o Ultimatum colocou ao regime da Monarquia Constitucional deveu-se menos à questão pendente com os ingleses – rapidamente resolvida – do que à luta política interna. Um Estado de que tantos dependiam – outra constante portuguesa - era sempre apetecível fruto de disputa partidária, devido à necessária e quase sempre conflituosa bulha pelos cargos públicos e hipóteses de administração de capitais de investimento em obras e melhoramentos, quando não da concessão de rendosos negócios. Pelo sector republicano – uma parte do qual estava sequioso em aceder às citadas oportunidades – apresentava-se todo o tipo de promessas de redentor messianismo, desde o ensino universal e gratuito até à infalível presença nacional no palco da grande política mundial, devido à constituição de forças armadas poderosas e capazes de garantir um lugar ao sol que há três longínquos séculos atingira o seu zénite. A simples mudança na forma de representação do Estado surgia quase como garantia de um almejado renascer, propiciador de todos os possíveis progressos, numa época em que ser-se avançado era um quase sinónimo de humanidade civilizadora, ou melhor, o exclusivo apanágio do homem branco do qual o português reivindicava a sua condição de povo.
As berrarias, tropéis de calçada e vivas!, ou morras! da autoria de uma multidão ociosa que preenchia as ruas das duas principais cidades portuguesas acabaram por coagir poderosamente quem tinha a autoridade e o direito para a necessária e aturada negociação dos interesses nacionais. Sem qualquer verdadeiro sentido das necessidades do momento, todos cederam e deixaram-se ultrapassar pelo ruidoso cortejo que nas praças decidia quem era ou não merecedor de um até então bastante morno portuguesismo de raça. A Imprensa cedeu, tal como cederam os partidos, a Sociedade de Geografia e uma muito restrita e influenciada intelectualidade.
Os danos causados pelas delongas impostas ao rápido acordo com os ingleses levaram a um prejuízo maior do que aquele teoricamente infligido pelo Ultimatum, pois se o primeiro Tratado – rejeitado no Parlamento, mercê da pressão da opinião pública – concedia a Portugal uma ligação fluvial entre as duas grandes colónias africanas, aquele que mais tarde seria ratificado deixava-nos apenas a nascente – em Angola – e a parte final do grande Zambeze que desagua no Canal de Moçambique.
O 31 de Janeiro consistiu, também, num reescalar de forças internas do PRP. Ainda a anos da preponderância de Afonso Costa, Bernardino Machado, Brito Camacho e António José de Almeida, as personalidades que haviam fundado o Partido há duas décadas tinham-se resignado ao status quo vigente e, antes do mais, pretendiam participar num jogo político onde a partilha de cargos era um horizonte de promessas de realização de interesses pessoais. O PRP encontrava-se desorganizado e poucos o tomavam a sério, mesmo entre portas. Num país habituado a teorias da conspiração e ao gizar de revoluções, em torno de uma mesa onde jamais faltava o mais famoso produto de exportação nacional, conhecia-se com muita antecedência a preparação de um movimento atribuível a alguns sectores do velho PRP – Elias Garcia, Sampaio Bruno, João Chagas, Alves da Veiga e um jornalista de escândalos, Santos Cardoso - ansiosos pelo apear do novo Directório político vigente, onde pontificavam Manuel de Arriaga e Homem Christo, este último, aliás, um futuro monárquico intransigente. A “revolução” era o segredo mais conhecido em qualquer botequim, tasca, ou loja do Porto. Ventilavam-se os nomes e contava-se abertamente de boca a boca que estariam envolvidas todas as unidades da guarnição militar da cidade. Não era verdade, mas o rumor insistiu na informação. O momento parecia propício, até porque a insatisfação no corpo de sargentos oferecia uma oportunidade para a manifestação do descontentamento do grupo.
Os acontecimentos demonstraram à saciedade o quão pouco são fiáveis as juras e as abnegações demonstradas em horas de irreflexão ditada por festiva exaltação de espíritos.
Apenas três oficiais menores aderiram ao motim, comandando 800 praças. Contra os avisos de prudência emitidos por responsáveis republicanos – Basílio Telles-, iniciou-se a aventura pelas três da madrugada, quedando-se ambos os campos numa certa expectativa, até que pelas sete da manhã Alves da Veiga – que vaticinara o desastre – proclamava a República na varanda dos Paços do Concelho do Porto. Na tradição do republicanismo federal, hasteava-se um pendão claramente iberista onde um círculo verde sobre pano vermelho confirmava a positivista tradição emprestada pelo Centro Republicano Federal de Badajoz.
O governo provisório mencionava os nomes de Rodrigues de Freitas, José Maria Correia da Silva, Joaquim Bernardo Soares, José Ventura dos Santos Reis, António Joaquim de Morais Caldas, Alves da Veiga e Joaquim Azevedo Albuquerque. Deste elenco, quatro declarariam de forma peremptória jamais terem permitido a inclusão das suas identidades na lista apresentada.
Com o alvorecer, as ruas foram-se enchendo daquela multidão que então as povoava de sol a sol. Há que entender que ao tempo fazia-se uma vida ao ar livre citadino muito intensa e diferente daquela de décadas passadas. A migração dos campos para a grande cidade propiciara uma chusma ociosa que se encarregava de biscates ocasionais, ou que procedia a recados e transportava mercadorias. Aguadeiros, vendedores de todo o tipo de bens alimentares, amoladores, engraxadores, ardinas e moços de fretes eram a massa ideal para as arruadas às quais, na esmagadora maioria das vezes, os assuntos políticos eram totalmente alheios. Esta gente encontrava-se à disposição de qualquer grupo de agitadores e os republicanos cedo se aperceberam do manancial.
Não foi difícil o apanhar dos civis nas ruas que se iam enchendo para a quotidiana labuta ou ociosidade entrecortada de fretes e as poucas fotografias que nos chegaram são bem expressivas. Estava formado o necessário clima daquela desordem pública a que os centros urbanos há muito e, sob os mais diversos pretextos, se tinham habituado.
Tudo acabou por volta das 11 horas da manhã, quando a Guarda Municipal desfechou uma salva de espingardas Kropatschek sobre o heteróclito grupo, tendo ocorrido uma correspondente debandada geral. Alguns elementos decidiram refugiar-se na Câmara Municipal, de onde foram rapidamente desalojados por uns escassos tiros desfechados por duas peças de artilharia.
As baixas foram correspondentes à rapidez da refrega, na qual as quarto centenas de elementos da Guarda facilmente dispersaram os mais de 800 praças do exército: cinco militares mortos e cinco civis que assistiam ao tiroteio, assim como perto de quatro dezenas de feridos. Os processos jurídicos que se seguiram, confirmaram a necessidade de minimização do acontecimento e o próprio João Chagas, que dias antes se apresentara na prisão para evitar o comprometimento na aventura que ajudara a planear, esteve sempre consciente do generalizado clima de impunidade que se instalara e que era do contento de todas as facções. As a priori pesadas sentenças e as quase automáticas amnistias provaram-no.
O 31 de Janeiro marcaria, quiçá, o modelo geral para as futuras sublevações onde aos elementos militares por vezes se adicionavam civis adversos à situação vigente. Na maior parte das vezes condenados ao fracasso, ocasionalmente conseguiram os seus intentos e contra toda a geral expectativa. O habitual desinteresse colectivo e alheamento da coisa pública tornou-se numa característica geral da sociedade portuguesa, sempre disposta a acolher o vencedor do momento. Serve como lição dada por um passado que o futuro poderá uma vez mais confirmar.
Nuno Castelo Branco
Se em França a chamada Tomada da Bastilha foi heroicizada a uma dimensão que pouco corresponde à realidade daquele dia 14 de Julho de 1789, tal acontecimento consistiu, contudo, no marco iniciador de um outro capítulo na relação de forças que alterariam para sempre o aspecto social e político do país. Uma mal-sucedida tentativa de contemporização por parte do governador da fortaleza, que já era apenas um pálido símbolo de outros dias em que teve outro peso, levou ao conhecido desfecho. Em nota de curiosidade, saliente-se que o aproveitamento do mito levava a que mais de sete décadas decorridas ainda fossem atribuídas avultadas somas para pouco prováveis, mas autoproclamados, heróis da Bastilha. O mesmo sucederia pouco mais de um século depois, quando a profusão de “heróis da Rotunda” ameaçou esmagar o novel regime com oportunos pedidos de reconhecimento.
Um famoso filme de Eisenstein mostra-nos uma outra versão de encenada correria que, na realidade, pouca verosimilhança teve com os acontecimentos. O assalto ao Palácio de Inverno de S. Petersburgo foi para o regime bolchevista um pretexto precioso – propiciado pela recém-nascida tecnologia cinematográfica – para a necessária propaganda mobilizadora de uma volúvel “consciência de massas”. Os factos reais foram bem diferentes e o tiroteio existiu, mas sem qualquer dimensão aproximada àquela que o talento do realizador oficial apresentou. A obra de arte consistiu numa necessidade de afirmação, à semelhança de outra que mais tarde surgiria no alvorecer da rivalidade que oporia a URSS ao III Reich. Alexandre Nevsky é um filme com uma clara identidade política que, nas mentes russas, fez a alusão a tempos passados com uma clara correspondência à situação internacional da época.
Em Portugal, temos então o autêntico padrão basilar do 31 de Janeiro. Quando poucos anos antes, Elias Garcia, então o dirigente do PRP, propunha a pura e simples dissolução do Partido, tal se devia à completa impossibilidade da existência de uma organização que pudesse competir com os chamados partidos rotativos e constitucionais: o Regenerador e o Progressista. De facto, os republicanos consistiram, durante demasiado tempo, numa arma de arremesso à mercê de qualquer um dos principais grupos políticos contendores e a eleição de deputados em S. Bento foi sempre pautada pela negociação com o aliado do momento, ansioso por ameaçar o adversário, atacando indirectamente a figura a quem em última instância competia a atribuição da chefia do Governo: o Rei. Disso ninguém alimentava qualquer tipo de dúvida e os próprios republicanos ainda mais do que os seus imaginados adversários do campo monárquico.
A situação portuguesa em Janeiro de 1891 ainda vivia o rescaldo do Ultimatum que fizera desfazer, no invisível éter, os grandiloquentes sonhos de grandeza anexionista que as “agremiações patrióticas” de modo louco e populista alimentaram junto da incipiente e volátil opinião pública urbana. A questão colonial era, como muitas outras, uma importação da moda expansionista que grassava nas principais potências europeias. Bem conscientes de um passado de grandeza histórica, os impressionáveis portugueses do fim de Oitocentos julgavam possível igualar nos mapas as grandes manchas que iam colorindo África e simbolizavam, para todos os efeitos, o estabelecimento da Union Jack britânica e da Tricolor francesa em territórios inexplorados, mas prometedores de farta recompensa material. Tal como os espanhóis em relação aos seus, há muito esquecidos e nominais, territórios insulares do Pacífico – que mais tarde acabaram por ser vendidos à Alemanha sem que alguém se manifestasse nas ruas de Madrid e Barcelona -, os portugueses apreciavam a aparência na firmeza, desde que isso não implicasse qualquer sacrifício pessoal ou colectivo. O que significava a remissão para um distante e anónimo Estado a responsabilidade pela salvaguarda dos pergaminhos de um sempre em crescendo nacionalismo que fazia a época.
A questão do Mapa Cor-de-Rosa consistiu num venenoso amontoado de equívocos, falsas esperanças de participação no jogo das grandes potências e, sobretudo, numa inexplicável cedência ao irrealismo presente nas ruas e sempre açulado por um frenético publicismo que fazia furor nos apinhados cafés e tascas de Lisboa.
Como mais tarde (1895) o esmagador episódio de Fachoda demonstraria, nem a plena ocupação de um território – tal como previra o Congresso de Berlim - significava a automática posse de qualquer área colonial que estivesse na mira da potência dominante, a Inglaterra. A França ocupou o Vale do Nilo sudanês, ergueu a bandeira com apresentação de armas por parte da guarnição militar e anexou formalmente o território. Dias depois, umas tantas canhoneiras britânicas obrigaram à aturada ponderação parisiense e, à parte os normais bambúrrios de boulevard, o Quai d’Orsay emitiu a ordem de arriar a flâmula de Austerlitz – e de Waterloo -, evitando uma guerra de catastrófico desfecho.
Nem de jure, nem de facto, Portugal podia almejar a uma séria reivindicação de soberania sobre os territórios que preenchiam o gigantesco e quase desconhecido hiato entre a costa angolana e moçambicana. A quimera confirmar-se-ia poucos anos mais tarde, quando da imperiosa necessidade de plena ocupação do hinterland da então África Oriental Portuguesa. As campanhas de Mouzinho de Albuquerque, Caldas Xavier e outros “africanistas” enfrentaram os poderosos vátuas que, para grande surpresa na Europa, foram derrotados por uma quase temerária força expedicionária portuguesa, precisamente no momento em que a Itália era copiosamente esmagada pelos abexins, em Aduá.
O problema que o Ultimatum colocou ao regime da Monarquia Constitucional deveu-se menos à questão pendente com os ingleses – rapidamente resolvida – do que à luta política interna. Um Estado de que tantos dependiam – outra constante portuguesa - era sempre apetecível fruto de disputa partidária, devido à necessária e quase sempre conflituosa bulha pelos cargos públicos e hipóteses de administração de capitais de investimento em obras e melhoramentos, quando não da concessão de rendosos negócios. Pelo sector republicano – uma parte do qual estava sequioso em aceder às citadas oportunidades – apresentava-se todo o tipo de promessas de redentor messianismo, desde o ensino universal e gratuito até à infalível presença nacional no palco da grande política mundial, devido à constituição de forças armadas poderosas e capazes de garantir um lugar ao sol que há três longínquos séculos atingira o seu zénite. A simples mudança na forma de representação do Estado surgia quase como garantia de um almejado renascer, propiciador de todos os possíveis progressos, numa época em que ser-se avançado era um quase sinónimo de humanidade civilizadora, ou melhor, o exclusivo apanágio do homem branco do qual o português reivindicava a sua condição de povo.
As berrarias, tropéis de calçada e vivas!, ou morras! da autoria de uma multidão ociosa que preenchia as ruas das duas principais cidades portuguesas acabaram por coagir poderosamente quem tinha a autoridade e o direito para a necessária e aturada negociação dos interesses nacionais. Sem qualquer verdadeiro sentido das necessidades do momento, todos cederam e deixaram-se ultrapassar pelo ruidoso cortejo que nas praças decidia quem era ou não merecedor de um até então bastante morno portuguesismo de raça. A Imprensa cedeu, tal como cederam os partidos, a Sociedade de Geografia e uma muito restrita e influenciada intelectualidade.
Os danos causados pelas delongas impostas ao rápido acordo com os ingleses levaram a um prejuízo maior do que aquele teoricamente infligido pelo Ultimatum, pois se o primeiro Tratado – rejeitado no Parlamento, mercê da pressão da opinião pública – concedia a Portugal uma ligação fluvial entre as duas grandes colónias africanas, aquele que mais tarde seria ratificado deixava-nos apenas a nascente – em Angola – e a parte final do grande Zambeze que desagua no Canal de Moçambique.
O 31 de Janeiro consistiu, também, num reescalar de forças internas do PRP. Ainda a anos da preponderância de Afonso Costa, Bernardino Machado, Brito Camacho e António José de Almeida, as personalidades que haviam fundado o Partido há duas décadas tinham-se resignado ao status quo vigente e, antes do mais, pretendiam participar num jogo político onde a partilha de cargos era um horizonte de promessas de realização de interesses pessoais. O PRP encontrava-se desorganizado e poucos o tomavam a sério, mesmo entre portas. Num país habituado a teorias da conspiração e ao gizar de revoluções, em torno de uma mesa onde jamais faltava o mais famoso produto de exportação nacional, conhecia-se com muita antecedência a preparação de um movimento atribuível a alguns sectores do velho PRP – Elias Garcia, Sampaio Bruno, João Chagas, Alves da Veiga e um jornalista de escândalos, Santos Cardoso - ansiosos pelo apear do novo Directório político vigente, onde pontificavam Manuel de Arriaga e Homem Christo, este último, aliás, um futuro monárquico intransigente. A “revolução” era o segredo mais conhecido em qualquer botequim, tasca, ou loja do Porto. Ventilavam-se os nomes e contava-se abertamente de boca a boca que estariam envolvidas todas as unidades da guarnição militar da cidade. Não era verdade, mas o rumor insistiu na informação. O momento parecia propício, até porque a insatisfação no corpo de sargentos oferecia uma oportunidade para a manifestação do descontentamento do grupo.
Os acontecimentos demonstraram à saciedade o quão pouco são fiáveis as juras e as abnegações demonstradas em horas de irreflexão ditada por festiva exaltação de espíritos.
Apenas três oficiais menores aderiram ao motim, comandando 800 praças. Contra os avisos de prudência emitidos por responsáveis republicanos – Basílio Telles-, iniciou-se a aventura pelas três da madrugada, quedando-se ambos os campos numa certa expectativa, até que pelas sete da manhã Alves da Veiga – que vaticinara o desastre – proclamava a República na varanda dos Paços do Concelho do Porto. Na tradição do republicanismo federal, hasteava-se um pendão claramente iberista onde um círculo verde sobre pano vermelho confirmava a positivista tradição emprestada pelo Centro Republicano Federal de Badajoz.
O governo provisório mencionava os nomes de Rodrigues de Freitas, José Maria Correia da Silva, Joaquim Bernardo Soares, José Ventura dos Santos Reis, António Joaquim de Morais Caldas, Alves da Veiga e Joaquim Azevedo Albuquerque. Deste elenco, quatro declarariam de forma peremptória jamais terem permitido a inclusão das suas identidades na lista apresentada.
Com o alvorecer, as ruas foram-se enchendo daquela multidão que então as povoava de sol a sol. Há que entender que ao tempo fazia-se uma vida ao ar livre citadino muito intensa e diferente daquela de décadas passadas. A migração dos campos para a grande cidade propiciara uma chusma ociosa que se encarregava de biscates ocasionais, ou que procedia a recados e transportava mercadorias. Aguadeiros, vendedores de todo o tipo de bens alimentares, amoladores, engraxadores, ardinas e moços de fretes eram a massa ideal para as arruadas às quais, na esmagadora maioria das vezes, os assuntos políticos eram totalmente alheios. Esta gente encontrava-se à disposição de qualquer grupo de agitadores e os republicanos cedo se aperceberam do manancial.
Não foi difícil o apanhar dos civis nas ruas que se iam enchendo para a quotidiana labuta ou ociosidade entrecortada de fretes e as poucas fotografias que nos chegaram são bem expressivas. Estava formado o necessário clima daquela desordem pública a que os centros urbanos há muito e, sob os mais diversos pretextos, se tinham habituado.
Tudo acabou por volta das 11 horas da manhã, quando a Guarda Municipal desfechou uma salva de espingardas Kropatschek sobre o heteróclito grupo, tendo ocorrido uma correspondente debandada geral. Alguns elementos decidiram refugiar-se na Câmara Municipal, de onde foram rapidamente desalojados por uns escassos tiros desfechados por duas peças de artilharia.
As baixas foram correspondentes à rapidez da refrega, na qual as quarto centenas de elementos da Guarda facilmente dispersaram os mais de 800 praças do exército: cinco militares mortos e cinco civis que assistiam ao tiroteio, assim como perto de quatro dezenas de feridos. Os processos jurídicos que se seguiram, confirmaram a necessidade de minimização do acontecimento e o próprio João Chagas, que dias antes se apresentara na prisão para evitar o comprometimento na aventura que ajudara a planear, esteve sempre consciente do generalizado clima de impunidade que se instalara e que era do contento de todas as facções. As a priori pesadas sentenças e as quase automáticas amnistias provaram-no.
O 31 de Janeiro marcaria, quiçá, o modelo geral para as futuras sublevações onde aos elementos militares por vezes se adicionavam civis adversos à situação vigente. Na maior parte das vezes condenados ao fracasso, ocasionalmente conseguiram os seus intentos e contra toda a geral expectativa. O habitual desinteresse colectivo e alheamento da coisa pública tornou-se numa característica geral da sociedade portuguesa, sempre disposta a acolher o vencedor do momento. Serve como lição dada por um passado que o futuro poderá uma vez mais confirmar.
Nuno Castelo Branco