“Embalde alguns preciosos faniquentos, tomando por bondade de índole caquexias passivas de carácter, embalde eles tentaram pregar a selvajaria das touradas, explicando o entusiasmo geral por ferocidade de instintos, e sentimentalizando o boi com litanias românticas de chochinhas. Todas as almas foram surdas à mariqueria desses bolas, e às invectivas deles pedindo a proibição das corridas e a prorrogação ao touro das regalias que a Carta Constitucional garante ao homem, um desusado clamor fremiu das bocas, e as trinta e sete praças de Portugal encheram-se de gente, a aclamar fora de si touros e toureiros.”
Cortante, burlesco, indigesto, terror de “faniquentos” e “chochinhas”, eis Fialho de Almeida n’ “Os Gatos”, a propósito das tentativas de proibição do espectáculo tauromáquico. O escritor de Vila de Frades, que morreu faz agora um século, apreciava as corridas de touros e dedicou-lhe múltiplos escritos, nos quais expressou os seus pontos de vista sobre a sociedade portuguesa de finais do século XIX, com acutilância e inventividade linguística.
Seria Fialho dos aficionados que compareciam religiosamente aos domingos na praça do Campo de Santana e depois na do Campo Pequeno? Não se sabe. O certo é que a sua escrita sobre a matéria denota conhecimento de causa e agudeza de análise. O Fialho que escreve na revista “Sol e Sombra” sobre “O Problema Taurino”, não é um diletante, mas sim alguém que identifica certeiramente os males que corrompiam os festejos taurinos em Portugal - que não eram, bem vistas as coisas, muito diferentes dos que afligiam o País. As críticas do escritor alentejano ao ambiente tauromáquico e seus protagonistas acabam por ser uma extensão da crítica cerrada com que mimoseou a toda a sociedade do seu tempo.
Nos seus escritos taurinos, Fialho lamenta amargamente a decadência da bravura dos touros portugueses, equivalente ao declínio das elites nacionais. “As raças que há, tirante a Palha Blanco, afalcoam, e dizem os sabedores que a domesticidade secular lhes corrompeu o tipo, o sangue e o génio impetuoso, por uma civilização semelhante à que fez resvalar a cavalaria de Cristo do guerreiro san-graliano do século XIII, ao boticário eleitoral do século XIX”, escreve em “À Esquina”.
De toureiros não andávamos melhor. “Sangue toureiro, propriamente, não há”, proclama Fialho. “Essa efervescência selvática, que foi nos séculos heróicos de Portugal uma como derivante da vida máscula das viagens e das batalhas, sobras de força, esbanjadas pela mocidade em jogos atléticos e simulacros de combates, tem-se perdido quase por completo, desde que a aristocracia hipotecada e expulsa dos seus coutos, veio para a cidade aposentar os filhos em bêbados da Tendinha, fiscais da alfândega ou pretendidos de meninas ricas com avaria.” Denotando uma notável capacidade de antecipação, Fialho aconselha alguns aristocratas que toureavam como amadores a porem de parte preconceitos de classe e a profissionalizarem-se. António Perestrelo, Simão da Veiga ou Duarte Pinto Coelho, “lá poderiam, posto de banda o preconceito de que picar toiros é modo de vida humilhante, deixar pudores fictícios que os recluem num simples diletantismo, e entrar francamente na vida do trasteio, prestes a fazerem dela instrumento de glória e de fortuna.” O futuro deu-lhe razão: no século XX, o toureio mostrou-se incompatível com amadorismos, excepção feita aos forcados, e seguiu o caminho da profissionalização.
Aos forcados dedica Fialho palavras azedas. De facto, a grande maioria dos pegadores de touros do século XIX eram homens que viviam nas margens da sociedade e que encaravam a actividade apenas como forma de ganhar alguns cobres. Segundo o sociólogo José Machado Pais, os forcados pertenciam a uma "marginalidade socialmente integrada”, formada por “prostitutas, fadistas, marialvas, toureiros, boleeiros, vagabundos e marinheiros.” Alcoólicos muitos deles, arrastavam para as praças a decadência e a miséria que suportavam no seu dia-a-dia. Pelo contrário, para Fialho a pega devia ser uma mostra de masculinidade e destreza. “Em vez de oito borrachões injectados de estupidez, envelhecidos em tombos, fazendo vida de gladiadores sórdidos, e morrendo quase todos do deboche adstrito às semanas de ociosidade, por que não faremos das pegas um certame de vida máscula, com inscrição facultada a todos os rapazes destemidos, aos clubes de desportismo atlético, aos jovens ginastas e traga-balas da cidade?”
A questão dos touros de morte punha-se já no tempo de Fialho. Nesta matéria, a posição do autor de ”O País das Uvas” não deixa margem para dúvidas: é abertamente favorável à corrida integral. “Sorte de morte. Querem-na todos, e ninguém toma a iniciativa de pedi-la, e legiferante algum se atreve a decretá-la.” O “arremedo” da estocada, com uma espada falsa, “não estesia nem ergue o coração do espectador: é um desengano parecido com o de alguém que estando a ver ungir um sogro rico, súbito ressurge o tipo dentre os azeites bentos do padre – e adiada a herança para quando o tempo o permitir!” A culpa radicava na nossa “hesitação de não fazermos nada completo, nesta cobardia de, primeiro que nos abalancemos a qualquer coisa, cogitarmos no que dirá a opinião de nós, o estrangeiro, o homem da tenda, o vizinho”.
Mesmo assim, reconhecia Fialho, as corridas de touros “são o único espectáculo alegre do país, o único onde o português tem graça, e onde os seus instintos satíricos, tomando forma de insectos, por toda a parte vão mordendo os cachaços do ridículo, entre risadas e bromas de cair.”
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